O PRIMEIRO RELATO: UM ÔNIBUS PARA SETEALÉM
A HISTÓRIA QUE DESENCADEOU TODAS AS HISTÓRIAS
1994. Eu estava no segundo ano da faculdade. Tinha dezenove anos e lamentava o fato de que só poderia cursar o período noturno a partir do próximo ano. Os dois primeiros anos eram obrigatoriamente matutinos, o que dificultava a busca por empregos ou estágios. Até então, minha experiência se resumia a um longo período como gerente de uma vídeo-locadora, que era como se chamava o Netflix da época.
Mesmo morando longe da faculdade, eu adorava o caminho de volta. Os longos trechos a pé até o ponto de ônibus para, em seguida, tomar o Metrô, me permitiam observar como as pessoas eram diferentes em seus trajes, gestos e falas. Tudo aquilo era subsídio para novas histórias que eu, diariamente, escrevia. Obviamente, também aproveitava o caminho para ler.
Normalmente, caminhava até lá para tomar um ônibus, qualquer ônibus – o primeiro que passasse – pois todos levavam para um ponto da avenida onde eu facilmente acessaria o Metrô. Não importava o nome, o número ou a cor do ônibus, todos obrigatoriamente iam até o fim da avenida, para então, seguirem seus itinerários. Isso era bom, porque eu não me demorava mais que dois minutos no ponto.
Naquela tarde quente de outubro, após uma exaustiva aula de Mercadologia, segui meu caminho costumeiro até uma grande e famosa avenida há alguns minutos do campus. Cheguei no ponto e coloquei um CD, acho que do Nação Zumbi, no discman. A pilha estava acabando e a voz do Chico Science parecia demoníaca. Um ônibus chegou e parou. Entrei e substituí o discman por um livro.
Em média, o trajeto demorava de vinte e cinco a trinta minutos por causa do trânsito e, quando eu tinha sorte de encontrar um banco vazio, lia várias páginas. Naquele dia, nem quinze minutos se passaram e senti a mulher ao meu lado, no banco, me cutucar. Parei de ler e olhei para ela.
- Você não vai para Setealém, vai? – ela perguntou.
Apertei os olhos, tentando entender o que ela havia dito. Teria sido Santarém?
Ela insistiu:
- Esse ônibus vai para Setealém. É melhor você descer.
Sorri para ela. O nome “Setealém” havia ficado claro, mas o conselho não fazia sentido. Olhei para os lados e todos, absolutamente todos do ônibus estavam me olhando. Uma outra mulher, em pé, um pouco mais à frente, falou:
- É, vai...desce, moço.
Próximo a ela, um rapaz com uma pasta na mão acenou positivamente com a cabeça e foi mais incisivo:
- Desce aí!
Antes que eu perguntasse o que estava acontecendo, o cobrador – que também me olhava, com o maço de notas na mão – gritou para o motorista:
- Vai desceeeeer!
O ônibus parou na hora. Ali não era um exatamente um ponto, mas eu não liguei. Levantei-me rapidamente do banco e fui em direção à porta aberta. As pessoas no corredor abriram caminho acompanhando-me com o olhar.
Desci.
Confesso que, na hora, dezenas de pensamentos me ocorreram. Seria um ônibus particular? Não. Havia um cobrador, afinal de contas. Teriam me confundido com alguém? Talvez. Assim que pisei no asfalto, o ônibus retomou o caminho, até que, estranhamente, virou à direita em uma ladeira de paralelepípedos. Um trajeto incomum.
Aquele nome "Setealém" nunca mais saiu da minha mente. Seria um bairro? Uma cidade? Perguntei aos meus conhecidos e até olhei no Guia de Ruas, uma espécie de Waze do século passado, onde seu dedo indicador fazia o papel do carrinho. Ninguém nunca reconheceu esse nome nas proximidades ou até em outro lugar do mundo.
Sei que, dias depois, passei a sonhar com Setealém e, desde então, pelo menos uma vez por mês me vejo em suas estranhas ruas, durante o sono.